AMBIGUIDADE COMO MÉTODO
Dom Casmurro
Ao prosseguir no exame do leitor a quem se escreve, convém deter-se em uma obra que, mais do que qualquer outra em nossa literatura, demonstra como a narrativa pode orientar o leitor sem jamais conduzi-lo pela mão. Dom Casmurro não é apenas um romance; é um exercício deliberado de ambiguidade.
Desde as primeiras páginas, o narrador se apresenta como alguém que deseja “atar as duas pontas da vida”. A declaração parece simples, quase doméstica. No entanto, ela já estabelece o pacto essencial da obra: o leitor será convidado a acompanhar uma memória, não um registro fiel dos fatos.
Bentinho fala com segurança, mas não com clareza absoluta. Ele afirma, sugere, insinua. Raramente prova. O texto avança apoiado em lembranças filtradas pelo tempo, pelo ressentimento e pela necessidade de justificar-se. Ainda assim, o narrador nunca se revela abertamente falso. Eis o ponto decisivo: a dúvida não nasce de contradições evidentes, mas da coerência excessiva.
Machado compreende que a ambiguidade não consiste em confundir, mas em oferecer mais de uma leitura possível sem desorganizar o relato. Cada cena cumpre sua função, cada informação chega no momento adequado. O leitor não se perde; hesita. E essa hesitação é o verdadeiro motor da narrativa.
Aqui, o leitor pressuposto é ativo. Ele precisa avaliar, comparar, desconfiar. O texto não responde às perguntas mais importantes porque sabe que respondê-las seria empobrecer a experiência. Ao leitor cabe decidir não o que aconteceu, mas em que versão acredita.
Esse método ensina uma lição valiosa ao escritor: clareza estrutural não exige transparência moral. Um texto pode ser rigorosamente organizado e, ainda assim, preservar zonas de incerteza. A ambiguidade, quando controlada, não é falha; é estratégia.
Assim, Dom Casmurro demonstra que escrever para um leitor inteligente não significa entregar verdades prontas, mas construir um percurso em que o leitor participa ativamente da interpretação. O autor não se ausenta; apenas se recusa a decidir por ele.
A boa narrativa, afinal, não encerra o pensamento. Ela o provoca.
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